A filósofa, poeta e prosista austríaca Ingeborg Bachmann tende a ser lembrada por sua amizade com Paul Celan – mais do que por sua poesia, o que atravessa, inevitavelmente, a maioria das leituras de seus poemas.
Eu a conheci por sua amizade com Fleur Jaeggy – o que atravessa, inevitavelmente, toda a leitura de seus poemas.
Desnecessário dizer que é uma injustiça à Ingeborg. Seus poemas e sua persona não carecem das amizades para se sustentarem – ainda assim, todos eles parecem ser dedicados às pessoas mais queridas de sua vida; parecem ter sido escritos para que fossem lidos pelas pessoas mais queridas de sua vida.
São um misto de ode ao mundo e segredo partilhado. Ora teatrais, ora discretos.
Sempre homéricos.
Eis 3 excertos de “o tempo adiado e outros poemas” [1], traduzidos por Claudia Cavalcanti.
Anna Carolina Rizzon
Canções em Fuga (VIII)
…terra, mar e céu.
Revolvidos em beijos
a terra,
o mar e o céu.
Envolvida por minhas palavras,
a terra,
ainda envolvidos por minha última palavra
o mar e o céu!
Castigada por meus sons
esta terra,
que soluçando em meus dentes
ancorou
com todos os seus altos-fornos, torres
e altivos cumes,
esta terra abatida,
que diante de mim desnudou seus barrancos,
suas estepes, desertos e tundras,
esta terra sem descanso
com seus palpitantes campos magnéticos,
que prendeu a si mesma
com correntes de forças que ainda desconhece,
esta terra anestesiada e anestesiante
com mudas de erva-moura,
venenos de chumbo
e fluxos de aroma —
afundada no mar
e aflorada no céu
a terra!
Sombras rosas sombra
Abaixo de um céu desconhecido
sombras rosas
sombras
acima de uma terra desconhecida
entre rosas e sombras
numa água desconhecida
minha sombra
Canções de uma ilha
Frutos de sombra tombam dos muros,
luz do luar tinge a casa, e a brisa do mar
traz cinza de vulcões arrefecidos.
Nos abraços de belos rapazes
dormem as praias,
tua carne lembra-se da minha,
já me afeiçoava a ela
quando os navios
se soltaram da terra e cruzes
com nosso fardo mortal
subiram ao mastro.
Agora os cadafalsos estão vazios,
eles procuram e não nos acham.
—–
Quando ressuscitares,
quando eu ressuscitar,
não haverá pedras diante do portão,
não haverá botes no mar.
Amanhã os barris rolarão
contra ondas dominicais,
iremos à praia
de pés ungidos, lavaremos
as uvas e pisaremos
a colheita para o vinho,
amanhã na praia.
Quando ressuscitares,
quando eu ressuscitar,
o carrasco estará pendurado no portão,
o machado afundado no mar.
—–
Um dia há de ser o da festa!
Santo Antônio, tu que tanto sofreste,
São Leonardo, tu que tanto sofreste,
São Vito, tu que tanto sofreste.
Lugar de nossas orações, lugar dos que oram,
lugar da música e da alegria!
Aprendemos a simplicidade,
cantamos no coro das cigarras,
comemos e bebemos,
os gatos magros
roçam em torno de nossa mesa;
até começar a missa da tarde
seguro-te pela mão
com os olhos,
e um coração tranquilo e corajoso
oferece-te os seus desejos.
Mel e nozes às crianças,
redes cheias aos pescadores,
fertilidade aos jardins,
lua ao vulcão, lua ao vulcão!
Nossas faíscas ultrapassaram as fronteiras,
à noite foguetes formaram
uma roda, a procissão afasta-se
em jangadas sombrias e concede
o tempo ao pré-mundo,
aos lagartos rastejantes,
à planta regozijante,
ao peixe febril,
às orgias do vento e do desejo
da montanha, onde uma estrela
devota se perde, bate-lhe
no peito e vira pó.
Agora sejam constantes, santos insensatos,
digam à terra firme que as crateras não descansam!
São Roque, tu que tanto sofreste,
tu que tanto sofreste, São Francisco.
—–
Quando alguém vai embora, tem de jogar
ao mar o chapéu com as conchas
recolhidas ao longo do verão,
e partir com os cabelos ao vento,
tem de lançar ao mar
a mesa posta para o seu amor,
tem de derramar no mar
o resto do vinho que ficou no copo,
tem de dar aos peixes seu pão
e misturar ao mar uma gota de sangue,
tem de enfiar bem sua faca nas ondas
e afundar seu sapato,
coração, âncora e cruz,
e partir com os cabelos ao vento!
Então ele retornará.
Quando?
⠀⠀⠀⠀⠀Não perguntes.
—
Há fogo sob a terra,
e fogo é pureza.
Há fogo sob a terra
e pedra que não pesa.
Há um fluxo sob a terra,
que em nós não retesa.
Há um fluxo sob a terra,
e nos ossos, leveza.
Vem aí um grande fogo,
vem aí um fluxo sobre a terra.
Testemunhas seremos, certeza.
Referências:
[1]: O tempo adiado e outros poemas; Ingeborg Bachmann; trad. Claudia Cavalcanti; editora Todavia.
Anna Carolina Rizzon nasceu no Rio de Janeiro, cresceu em Teresópolis e se exilou em São Paulo. É incompetente em diversos segmentos artísticos, mas insiste mesmo assim. Especialmente na escrita. Colabora com a Fazia Poesia e a Revista Úrsula e posta aleatoriedades nos blogs vOltas e h a v e r e s.